Há um século, em 1909, Carlos Justiniano Ribeiro Chagas, médico sanitarista brasileiro, nascido em 1879 e falecido em 1934, foi responsável pela descrição completa do ciclo da doença de Chagas, nome dado em sua homenagem. O cientista descobriu o patógeno (Trypanosoma cruzi), o vetor no Brasil (Panstrongylus megistus), os hospedeiros, as manifestações clínicas e a epidemiologia. Vários eventos já aconteceram ao longo deste ano, além dos que ainda irão acontecer, para marcar essa celebração, nos quais se apresentam os avanços nas pesquisas e as preocupações que a doença ainda gera.
José Maria Soares Barata, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), é um dos expoentes nesse assunto. Ele começou a trabalhar com vetores da doença de Chagas desde 1975, quando iniciou seu doutorado na instituição onde hoje leciona. Barata conta que Carlos Chagas, durante suas pesquisas na população em Lassance (MG), detectou os sinais do bócio endêmico como indício da doença de Chagas. O bócio é o aumento de volume da glândula tireóide por falta de iodo no alimento e nas águas ingeridas pela população, e é um quadro típico daquela região.
Barata diz que Chagas demorou por volta de dois anos para descobrir o ciclo completo da doença, até que no ano de 1909 o cientista concluiu, ao mesmo tempo, que o agente etiológico era um protozoário (T. cruzi), que o vetor era um inseto (o barbeiro) e que a doença apresentava dois ciclos: um ciclo no barbeiro e outro no homem. Assim, Chagas fez publicações simultâneas, envolvendo a descrição da doença, a parasitologia, o agente etiológico, o vetor transmissor e o quadro clínico.
Esses trabalhos publicados por Chagas, de acordo com Barata, foram muito bem recebidos em congressos internacionais, principalmente na Alemanha, com seriedade e louvor. Era uma doença muito frequente em várias comunidades das regiões brasileiras Sul e Sudeste e, entre 1910 e 1920, causou um impacto muito grande na sociedade. Depois, a doença foi esquecida e, em 1940, volta a ganhar importância. Barata afirma que nessa época, havia verba para pesquisa sem restrições: barcos, alimentação, tripulação, dentre outros. Com a chegada dos militares ao poder, na década de 1960, houve a capitalização da ciência, dificultando a realização de pesquisas.
Conforme esses estudos foram sendo desenvolvidos e os programas de controle da doença de Chagas foram evoluindo, tornou-se mais difícil encontrar o barbeiro adulto. Muitas vezes, só era possível encontrar ovos ou exúvias dos insetos (uma camada de sua epiderme). Em 1975, o médico, epidemiologista e entomologista da USP, Oswaldo Paulo Forattini, em colaboração com a Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) do estado de São Paulo, cria condições para o estabelecimento uma base para vigilância entomológica da doença de Chagas, ou seja, para o controle do inseto transmissor, o barbeiro.
De acordo com Barata, São Paulo foi o primeiro estado a iniciar o controle de barbeiros, com o Serviço de Erradicação de Malária e Profilaxia da Doença de Chagas, a partir de 1960, e acaba se caracterizando como modelo para o resto do país. A partir de 1975, o então ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado, implanta o sistema de controle no Brasil inteiro. Nas décadas de 1980 e 1990, países do Cone Sul entraram nesse processo, tendo o programa brasileiro como modelo para eliminação do vetor.
Com o controle do Triatoma infestans, espécie de barbeiro exclusivamente domiciliada, algumas espécies consideradas silvestres passaram a invadir áreas domiciliadas por volta dos anos 1990, como o Triatoma rubrovaria, no Rio Grande do Sul, o Triatoma neglectus, em Goiás, e o Rhodnius nasutus, no Ceará. Assim, percebe-se que espécies silvestres começam a ser capazes de se domiciliar, merecendo posicionamento de alerta.
Barata afirma que com a eliminação do T. infestans, alguns programas foram desativados. Dessa maneira, podem surgir novos focos, como o encontrado em Campinas (SP) pela Sucen no início desta década. Atualmente, o problema da doença de Chagas basicamente tem sido a ingestão de alimentos contaminados por Trypanosoma cruzi. É o caso atual da região amazônica, a qual era considerada área a salvo da doença, além de outros casos surgidos no Brasil, como o de ingestão de caldo de cana contaminado em Santa Catarina.
Diante disso, Barata conclui que é necessária a persistência do controle desses vetores, particularmente a manutenção da vigilância entomológica dos vetores silvestres em todas as regiões brasileiras.